22.12.05

Contos do Cotidiano - Papagaio

A vida com Beti era boa. Enquanto ela trabalhava de telefonista, eu fazia bicos por aí, vagando de emprego em emprego.

Talvez pelo tamanho da cidade, fosse difícil os novos patrões ficarem sabendo dos motivos de minhas demissões. Cada emprego era pior que o outro. Nunca consegui entender o tal espírito coorporativo, o trabalho em equipe e a construção de uma empresa melhor. Terminada minha parte, simplesmente virava as costas e ia embora.

Afinal, apesar da empresa sempre aumentar os lucros, meu salário era reajustado uma vez ao ano. Só na época em que o sindicado fazia algo por nós. Mas o aumento nunca chegou a igualar os lucros. Com a vida mansa, na empresa, estavam apenas os donos. Carrões da moda, importados, roupas caras, amantes e horário reduzido de trabalho. E a maioria de nós pegava dois, até três ônibus lotados, para poder trabalhar. Outro tanto para ir embora.

O salário ruim não impedia que houvesse um pouco de diversão. Beti era bonita, me acompanhava no gargalo e não reclamava quando eu chegava tarde. Ela entendia a necessidade de beber com o pessoal, no bar, vez que outra. Mas nunca havia sexo nestas oportunidades. Acho que era uma forma silenciosa de protesto.

Já estávamos juntos fazia três meses, Beti arranjou um papagaio. O bicho já devia ter uns quinze ou vinte anos. E eu nem sabia que papagaios viviam tanto tempo. Fora de uma viúva. Como ela ganhava uma pensão miserável do governo, acabou dando o papagaio, pois não tinha dinheiro para comprar comida de passarinho. Sua única exigência foi a de poder ver o louro de vez em quando.

Quando o ganhamos, o papagaio quase não falava. Mas a Beti apegou-se a ele. Tentou lhe ensinar a falar. Estranho, mas o bicho só repetia as coisas que Beti e eu falávamos quando estávamos bêbados. Assim, tinhamos um papagaio que sabia falar palavrão e pornografia.

Quando estava de folga, Beti andava com o bicho no ombro. Onde quer que fosse, levava o papagaio. Era engraçado ver Beti no mercado, comprando comida, e o papagaio falando que queria trepar para todas as mulheres que passavam. Beti não ligava, continuava fazendo suas coisas. A viúva, antiga dona do papagaio deixou de visitá-la, quando o papagaio disse que queria ver ela gemer.

Mas o papagaio tinha seus dias de silêncio. Parava, parecia que refletia sobre a vida. Demorava cinco dias, às vezes mais, para sair daquela tristeza, para reanimar-se. Eu entendia.


22.8.05

Contos do Cotidiano - No quarto alugado

Finalmente aconteceu o previsto. Sem dinheiro, entreguei as chaves do apartamento onde ficara instalado por bons meses. A cama velha ainda tinha o cheiro de Beti. Belos seios e uma boa bunda. Me deixou depois que fui despedido do último emprego decente em que trabalhei.

Havia conhecido Beti lá. Ela era telefonista. Ficava sentada, quase nem usava as mãos para trabalhar. Tinha um fone no ouvido, e para controlar as ligações apertava uns botões no painel, e pronto. Sempre usava blusas sem mangas. Não eram muito decotadas porque os seios não eram grandes. Mas chamavam atenção pela perfeição. Redondos, com os bicos apontando pra cima. E usava saias. Não eram lá muito curtas. Mas todas eram de tecido molenga. Assim que Beti sentanva, sua saia subia. Ficava lá, as belas pernas cruzadas e uma lixa de unha nas mãos. Unhas sempre curtas, bem cuidadas. Pintadas de rosa. Um rosa inconsistente, fraco. Mas Beti usava porque Clara gostava.

Fazia um bom tempo que namoravam. Eu só tinha visto Clara uma vez. Sempre me demorova para entregar a correpondência para Beti. Ficava ali olhando aquelas pernas. Ela sabia que eu gostava, mas raramente eu podia elogiá-las, pois Beti sempre estava falando ao telefone. Assim que vi Clara, percebi que as duas namoravam. Beti acompanhou Clara com o olhar desde o momento em que ela entrou na saleta. Passou em revista todo o belo corpo de Clara. Magra, mas não muito. Pernas musculosas, sem gordura nenhuma. Tinha seios enormes, parecia que não agentaria carregá-los por muito tempo. Pensei em me oferecer para ajudar a carregá-los. Mas Beti desligou o telefone.
- Oi, minha linda. Saiu mais cedo hoje?
- Consegui uma folga porque fiz serão na terça. Vou para casa fazer algo para a janta. Não atrase.
- Estarei lá. Sete horas estarei lá, pode me esperar.

Então Clara inclinou-se na mesa e beijou Beti no rosto. Não era um beijo comum, de amigas. Foi mais longo, mas delicado. Com sentimento. Foi-se embora.

- Beti, não sabia que você...
- Oh! Desculpe, não lembrei que você estava aí. Disse Beti.
- Sem problema. Qualquer dia desses vê se me convida.
- Legal que você entende. Vou ver se Clara topa no próximo final de semana.

Depois daquele final de semana, passei a me demorar mais na saleta de Beti. Às vezes ela esquecia do telefone para conversar comigo. Acabou acontecendo. Ficamos próximos. Eu imaginava em morar com as duas, quem sabe até ter um caso com Beti e com Clara, ao mesmo tempo. Aí, um dia Beti chegou mais cedo e me pediu pra ir até a saleta.
- Clara e eu terminanos. Disse.
- Que coisa Beti.
- E o pior é que ela me deu até quarta para sair da casa. A casa é dela, você sabe. E não posso voltar para casa de meu pai. Ele jamais me aceitará novamente. Será que...?
- Tudo bem Beti. Mas o lugar é apertado. Vou me arranjar na sala, mas você tem que deixar um espacinho no guarda-roupas. Pelo menos pras camisas do uniforme.

Na quarta Beti estava lá. Não tinha muitas coisas. Coube tudo na camionete de um amigo. O lugar ficou apertado, mas as coisas dela deram o ar feminino que o lugar estava precisando. Naquela noite Beti estava cansada. Fiz a janta para nós. Jamais precisei dormir na sala.

8.8.05

Pedestre

Dirigia o carro pelo centro da cidade. Não era uma via movimentada. Aguardava a passagem de dois ou três carros, para que fosse minha vez de cruzar a preferencial.

Passou-se pouco tempo. Quando iniciei a manobra para dobrar à esquerda, uma mulher começou a atravesar a rua. Brequei. Enquanto ela passava, algo chamou a atenção. Não era muito gorda, nem muito magra. Deveia ter trinta, talvez trinta e cinco anos. Certamente já fora mais bonita, com a bunda e os seios no lugar. Mas a firmeza de outrora ainda podia ser percebida.

Caminhava com confiança. Mas alguma coisa continuava me intrigando. Antes de arrancar, olhei uma segunda vez. Eram as sandálias que usava. Sandálias com um grande solado. Devia ter seis ou sete centímetros de altura. Não apenas o salto, mas o solado todo. Aquilo me fez gargalhar. Os dedos dos pés da mulher ficavam para fora da sandália. E os pés eram mais grossos que o local feito para sustentá-los. Imaginei um elefante de patins. E a mulher não era gorda, já disse. Mas dissociando os pés calçados naquelas sandálias, do restante do conjunto, parecia realmente um elefante tentando equilibrar-se sobre patins.

A cena era hilária. Fiquei pensando naqueles caras que caem em adoração pelo pé feminino. Projetam sapatos, sandálias e chinelos para realçar a beleza dos pés. Certamente não imaginaram o resultado de sua adoração, quando o produto de suas mentes, concebido para delicadas modelos, são calçados por pessoas comuns. Algo tenebroso.

E eu, que já achava a mulher terrivelmente feia, caminhando com os pés metidos naquelas sandálias que não foram projetadas para ela, olhei uma terceira vez. A mulher já estava sobre a calçada. Parou, ficou imóvel por dois, talvez três segundos. Cuspiu nojentamente na calçada. Não apenas saliva. Fora um escarro. Percebi que realmente aqueles pés não deveriam calçar aquelas sandálias. Não foram fabricadas para ser utilizadas por que cospe daquele jeito.

Livrei-me dos pensamentos ao escutar uma buzina. Não tenho idéia de quanto tempo o cidadão do veículo que vinha em seguida já esperava. Mulheres cuspindo na rua. Arranquei enojado.

6.7.05

Indigente

Passava pela porta do supermercado quando uma gritaria chamou a atenção. Um desses que a imprensa costuma apelidar de indigente tentava comprar uma garrafa de qualquer coisa. Provavelmente algo que lhe faria esquecer daquela vida em que se metera.

Não que os mendigos em geral escolham a vida de mendigo, pedinte, esmoleiro ou qualquer coisa que o valha. Caem ali, acho, por falta de trabalho, que leva ao desespero, que leva ao alcoolismo, que os leva a simplesmente não ligar. Um conjunto de defeitos que caem, todos, numa só pessoa, até que a própria pessoa deixe de ligar para os defeitos, e deixe de considerá-los como tal.

Quem mais gritava era uma funcionária gorda, destas que, mesmo estando na merda, acham que banho e boa aparência valem alguma coisa. A gorda não queria deixar o mendigo entrar no supermercado. E o mendigo insistia em entrar. Mostrava o dinheiro para a gorda. Dizia que iria pagar. Teve um momento em que o mendigo pediu para a gorda ir até o balcão e pegar a cachaça. Mas ela afirmou que, enquanto fosse até o balcão, o mendigo iria roubar o caixa.

Nesse momento resolvi me meter na confusão. Perguntei pro mendigo qual era a bebida que ele queria.
- Qualquer cachaça, boa.
Boa, para ele, era a que podia ser paga com cinco reais. Fui até o balcão, peguei um litro de cachaça que conhecia e levei ao caixa da gorda. Peguei o dinheiro do mendigo e paguei.

Ele foi embora, feliz da vida. E quando saiu do local já tinha tomado uns três quartos do líquido que o libertaria da loucura da lucidez.

Perguntei pra gorda se ela não tinha medo que eu metesse a mão em alguma coisa, durante a ida até o balcão de bebidas.
- Não. O senhor parece distinto. Educado. Eu não posso desconfiar do senhor.

Tirei do casaco uma garrafa de uísque. Devia custar uns duzentos reais. Pus na frente da gorda. Fechei o casaco e fui embora.

21.6.05

Contos do Cotidiano - No Boteco do Mané

Vinha pela São João. Acabara de me ser negado outro emprego. A garantia do governo estava no último mês. Uma merreca. Não tinha guardado nada dos outros meses. A grana não cobria nem os gastos com a cerveja. Além do aluguel, pegara um empréstimo com o Canhoto. Gente boa, mas quando se tratava de dinheiro, engrossava.

Precisava de emprego. Precisava pagar o Canhoto. Fui até o boteco do mané. O clima não estava bom desde o dia que, ali perto, o Tonhão apagou o Zéca. Pedi uma cerveja. Estava quente. Não reclamei.

Na rua a molecada brincava. Dois pedaços de pedra, finos. Eram duas motocicletas. O guri usava calção velho. Também usava havaianas. Uma de cada cor. Preta do pé direito e azul no esquerdo. Duvido que deixem o moleque entrar num shopping. Brincar naquelas salas de jogos com luzes piscando, música, efeitos sonoros e visuais. E duvido que o guri tenha dinheiro, ou consiga algum com o pai bêbado. Vai ver que é por isso que pobre tem imaginação. Se não imaginasr, cai mais fundo no buraco que o nascimento já o colocou. Aqueles guris tinham mais responsabilidade que os pais deles. E não tinham culpa por ter nascido.

Tomei outro gole. Na televisão do bar passava um jogo da segunda divisão. Só segunda divisão pra ter jogo na quinta de tarde. Cara de sorte, o Mané. O movimento era bom. Sobrava o suficiente para pagar canal por assinatura. E na sexta o boteco lotava, iam ver a mulherada rebolar do pagode. De vez em quanto eu ia lá. Mas só quando achava que podia dormir acompanhado. Sempre dormia. Raramente acompanhado.

Uma vez o Mané tinha me dado um trabalho. Na copa. Era só pegar a anotação do garçom e entregar a bebida. Isto e lavar copos. Fique lá um tempo, mas acabava bebendo mais do que servindo. O Mané percebeu e me mandou trabalhar na limpeza. Não suportava beber os restos da cerveja das garrafas que recolhia. Estava sempre quente. Como a que tomava agora. Pedi a conta.

Quente, num dia quente e de azar. Suava muito. Sabia que o desodorante que estava no fim não seria substituído. Ia ficar desacompanhado mais uma sexta.

15.6.05

Contos do Cotidiano - Camisa Amarela

Sempre tive essa impressão da imensa porcaria que é o ser humano. O Zéca vivia cercando as mulheres casadas. Não estava cercado delas. Mas adorava correr um rabo-de-saia. Mas tinha que ser casada. Era uma tara dele. Se não fosse casada, ele dizia que corria o risco da mulher gamar e querer casar com ele. E ele não era homem de uma mulher. Por isso tantava com as casadas. Mulher casada não delata. Não abre o bico. Dia desses bateu lá em casa. Ele só ia lá quando precisava de alguma coisa. Menos mau. Me deixava queito a maioria do tempo. Bateu na porta. Abri:
- Ah?!? É só você.
- Deixa eu usar teu telefone.
- Porra! Pra quê comprou aquele celular?
- Cara, o meu só recebe ligação. E aquela loiraça que te falei pediu pra ligar. É ali no serviço dela. Ligação local.
- Vê se não demora. Tô duro. Daquela outra vez você falou que era rápido e ficou meia hora pendurado aí.

Valia a pena deixar. A loira era bonida, muito gostosa. E era uma cadela. Boa parte do pessoal do bairro já tinha saído com ela. Costuma bater ponto no boteco do mané. Sexta-feira. Sempre na sexta-feira, quando o marido viajava. O pior é que o cara nem suspeitava que era corno. Viajava na sexta de noite, trabalhava até na quarta num posto de gasolina. Na estrada, no meio do nada. E nos outros dias trabalhava no centro, noutro posto do mesmo dono. O dinheiro que entrava ele mandava pra esposinha. E ela torrava tudo em roupa e bijuteria. Nunca sobrava nada. O cara até já me devia uns trocos. Dizia que ía pagar.
- Minha esposa vai economizar.
Eu já tinha dado a grana por perdida. Quem sabe o Zéca faturava a loira. Me agradeceria por toda a vida. Eu até podia perdoar a dívida do corno, só por ser cúmplice.

- Alô! Aqui é o José Carlos, eu queria falar com a Senira.
...
- Não pode atender? Mas achei que era o horário de almoço dela.
...
- Mudou. Tá bom, ligo amanhã.

- Mudou o horário de almoço dela.
- Mudou nada. Quem atendeu?
- Era o chefe dela.
- Ah!

O chefe era amante oficial da loira. E todo mundo sabia da fama do Zéca. Não tinha sucesso com as mulheres. Mas tentava até a mulher chamar a polícia, ou pedir pra'lguém dar uma sova nele. Um pentelho. Se o chefe passasse o telefone, o cara ia ligar todo dia. Agradeci ao chefe da Senira em silêncio. Me livrou do Zéca ir todo dia pedir o telefone emprestado.

- Valeu bicho. Saiu. Foi até o bar, do outro lado da quadra. Tinha marcado um encontro com uma morena. A Vilma. Aquela também não valia nada. E era feia de dar dó. Magrelona, com uns cabelos que pareciam vassoura suja. Devia lavar só uma vez por mês. Quando pegava chuva. Saíram de mãos-dadas. Tinha até um bolão no bar. Fora essa, existe outra mulher casada que queira dar pro Zéca? Era a aposta. Ninguém acreditava. Mas se fosse verdade, quem jogou no sim receberia em torno de vinte pra um. Mas ninguém botava fé no Zéca.

Já iam chegando no final da quadra. Virando e andando uns metros estariam no cafofo que ele tinha alugado pra levar as senhoras. Dizia sempre senhoras, afinal, eram casadas. E mulher casada é coisa séria, de se tratar com respeito. Não tinha onde cair morto. Dois terços do salário gastava naquele cafofo. No aluguel. E morava de favor com o Pinga. Não tinha dinheiro nem pra ajudar a comprar comida.

Atravessei a rua e fui até o bar. Pedi uma cerveja. Tomei um gole. Ouvimos dois tiros. Achamos o Zéca estirado. O Tonho não gostava que caras de camisa amarela saíssem com a mulher dele.

12.6.05

Contos do Cotidiano - Truco

Eu carteava com o lombriga. O pé-sujo fez parceria com o canhoto. Sentaram na mesa de jogo, o pé-sujo cortou e o lombriga deu as cartas. Tomei um gole de cerveja. Peguei minhas cartas. Péssimo jogo. Parecia que o pé-sujo tinha tique nervoso, de tanto piscar e fazer caretas para o canhoto. O jogo de truco é o único momento na vida de um homem em que lhe é permitido piscar para outro homem. Não será tachado de bicha ou viado. Ao contrário, além de piscar para o parceiro, ele ainda estará com o gato. Interessante, o cidadão pisca para o outro, anunciando que está com o gato, e ninguém o chama de viado. Quero ver quem é realmente macho pra fazer isso em estádio de futebol. O lombriga sinalizou que não tinha nada. Péssimo jogo. Perdemos a primeira e entregamos. Zero a um.

O canhoto pegou o baralho. Ficou uns dois minutos jogando as cartas para lá e para cá. Tomei um gole de cerveja e o copo esvaziou. "Pega outra garrafa no congelador." Foi o que eu disse pro filho do lombriga, um moleque esquelético, de cabelo preto com umas mechas vermelhas pintadas. O moleque foi e voltou, mas esqueceu de abrir a garrafa. O canhoto continuava embaralhando. "Porra moleque, tem um abridor pendurado na porta da geladeria. Abre lá." O canhoto finalmente terminou e estendeu o monte de cartas para o lombriga, que cortou e me passou um quatro. Péssimo jogo. O canhoto terminou de dar as cartas. O pé-sujo tinha tique nervoso. Joguei o quatro. O pé-sujo jogou o mole e o lombriga jogou outro quatro. O canhoto descartou uma dama. Estavam bem. Na segunda o pé-sujo jogou um ás. O lombriga escondeu e o canhoto também. Joguei um dois. E depois um cinco. Péssimo jogo. O pé-sujo trucou e o lombriga correu. Zero a dois. Tomei um gole de cerveja.

Era minha vez de dar cartas. Dei umas três embaralhadas e passei para o canhoto cortar. Distribui o baralho e virei uma dama em cima da mesa. Beleza. Tinha dois cavalos. O tique nervoso do pé-sujo continuava. De primeira ele jogou um três. O lombriga não tinha nada. Aliás, tava ali um sujeito que nunca tinha nada. Fudido na vida, trabalhava numa loja de material agropecuário em plena cidade grande. A única coisa que realmente vendia naquela loja era ração de cachorro e de gato. Mas tinham que vender da barata, porque só gente estropiada freqüentava o local. Os ricaços comprovam ração em pet-shop. Ou então davam filé pra'queles animais nojentos que levam em shopping, restaurante, cabeleireiro e lojas. Lugares que barram criança maltrapilha na porta. É até engraçado, o bicho pode entrar, mas a criançada fica na vitrine lambendo com os olhos. Tomei um gole de cerveja. O canhoto jogou um cinco. Joguei um cavalo. O de copas. Tinha ainda o outro, de paus. Joguei um sete e segurei o cavalo. O pé-sujo jogou outro três. O lombriga e o canhoto esconderam. O pé-sujo trucou e o lombriga escondeu. Eu não tinha dado sinal. Mandei o pé-sujo jogar. Ele jogou uma dama. Suspeitei que o safado tinha levado a outra rodada na lábia. O canhoto jogou outra. Levantei pra seis. Correram. Três a dois.

O baralho foi pro pé-sujo. Tomei um gole de cerveja. Cortei. O pé-sujo deu as cartas. Péssimo jogo. Não tinha nada, mas parecia que o lombriga tinha alguma coisa. Estava ali se remexendo todo. O pé-sujo não se mexia. A cerveja deve ter curado o tique nervoso. O lombriga jogou. Ganhou sozinho a primeira. Então o pé-sujo trucou de novo. Tava ali um cara mentiroso. Não podia ser verdade, suspeitei. Afinal, o cara engana a mulher e a amante, saindo vez que outra com o bengala. Nem os amigos suspeitava que ele era bicha até o dia em que ele recebeu flores no serviço. Sem o pé-sujo saber, o canhoto pagou cinquenta pro entregador contar quem tinha mandado. Ninguém que sabia contou pro pé-sujo. Tomei um gole de cerveja. O lombriga parecia animado. Levantou pra seis. Então o pé-sujo subiu na cadeira, levantou pra nove. O lombriga nem me olhou. Mandou jogor. Era o gato. Péssimo jogo. Três a onze.

Agora o baralho era de novo do lombriga. Embaralhou bem. Tomei um gole de cerveja. O pé-sujo cortou e o lombriga distribuiu. Não tinha nada. O canhoto e o pé-sujo trocaram as cartas e o canhoto deu uma risadinha cínica. Tomei um gole de cerveja, tinha acabado de novo. "Guri, pega lá outra cerveja, e não esquece de abrir." O moleque do lombriga, tava todo encolhido ao lado do pai, mas foi lá. Trouxe a garrafa aberta. Guri esperto. Falaram que iam jogar. Dei uma olhada nas cartas do lombriga. Nada. Como eu, ele não tinha nada. Tomei um gole de cerveja. Botamos as cartas no baralho e saímos da mesa. Fui ver se ainda descolava alguma coisa pra comer. Péssimo jogo.

10.6.05

Pardieiro em Beira de Estrada

Três da madrugada. Sentado num banco duro. Gelado. Estava no meio do caminho. Saído do interior, voltando para a capital. É impressionante como no meio de todos os caminhos sempre existem lugares fétidos e nojentos. E é impressionante como, a cada ida e vinda, se cai ali. Gosto destes lugares.

O cidadão ao meu lado estava em pé. Não muito longe, nem tão perto. Dava pra sentir o cheiro do cigarro vagabundo que fumava. O cachorro, devia ter uns seis meses, o encarou. Fitou-o de baixo para cima umas duas vezes. Claro que o cheiro do cigarro incomodava mais a ele (o cachorro) do que a mim. Depois de encarar o cidadão, deve ter pensado o mesmo que eu: parece cocô escorrido, depois que jogam na parede.

O escorrido estava no mesmo ônibus vagabundo que eu. Provavelmente tinhamos o mesmo destino. A capital. Eu não o conhecia, fora saber que íamos para o mesmo lugar, que o cigarro que fumava era vagabundo e fedorento e que tinha cara de cocô escorrido, nada mais posso dizer sobre ele. Nem quero. As pessoas adoram poder dizer alguma coisa umas sobre as outras. Mesmo quando não se tem nada de útil ou mesmo de inútil para comentar, as pessoas ainda falam umas das outras. Já vi muitos casamentos acabarem por isso.

O cachorro veio para meu lado. Enfiou-se entre minhas pernas e lambeu meu sapato. Tinha pisado num sorvete. Provalmente jogado por um melequento qualquer, que não conseguiu terminá-lo antes da mãe, aos berros, puxá-lo para dentro do ônibus. O cachorro continuou. Ergui o pé para que pudesse lamber a sola. Ficou ali até sumir o gosto do sorvete. O sapato estava limpo novamente e o motorista não poderia dizer que eu sujaria o piso do ônibus.

Fui até o mostruário de bebidas dar uma olhada. Vinhos vagabundos e cachaça embotada em garrafas transparentes de cerveja. Antes devem ter sido enchidas com gasosa de franboesa. Muitas Vezes. Agora serviam de embalagem para o que alguns consideram a desgraça da humanidade, e outros consideram uma dádiva. Nenhuma valia ser comprada.

Estava frio. O alto-falante anunciou que o ônibus estava de saída. Fui até a porta esperar o motorista, torcendo para que não estivesse com sono depois de comer dois pratos de picadinho gorduroso, de carne de terceira. O cachorro veio se despedir. Deu uma cheirada e abanou o rabo. Acho que gostou de mim. Entrei depois do escorrido. Ainda fedia cigarro vagabundo.