21.6.05

Contos do Cotidiano - No Boteco do Mané

Vinha pela São João. Acabara de me ser negado outro emprego. A garantia do governo estava no último mês. Uma merreca. Não tinha guardado nada dos outros meses. A grana não cobria nem os gastos com a cerveja. Além do aluguel, pegara um empréstimo com o Canhoto. Gente boa, mas quando se tratava de dinheiro, engrossava.

Precisava de emprego. Precisava pagar o Canhoto. Fui até o boteco do mané. O clima não estava bom desde o dia que, ali perto, o Tonhão apagou o Zéca. Pedi uma cerveja. Estava quente. Não reclamei.

Na rua a molecada brincava. Dois pedaços de pedra, finos. Eram duas motocicletas. O guri usava calção velho. Também usava havaianas. Uma de cada cor. Preta do pé direito e azul no esquerdo. Duvido que deixem o moleque entrar num shopping. Brincar naquelas salas de jogos com luzes piscando, música, efeitos sonoros e visuais. E duvido que o guri tenha dinheiro, ou consiga algum com o pai bêbado. Vai ver que é por isso que pobre tem imaginação. Se não imaginasr, cai mais fundo no buraco que o nascimento já o colocou. Aqueles guris tinham mais responsabilidade que os pais deles. E não tinham culpa por ter nascido.

Tomei outro gole. Na televisão do bar passava um jogo da segunda divisão. Só segunda divisão pra ter jogo na quinta de tarde. Cara de sorte, o Mané. O movimento era bom. Sobrava o suficiente para pagar canal por assinatura. E na sexta o boteco lotava, iam ver a mulherada rebolar do pagode. De vez em quanto eu ia lá. Mas só quando achava que podia dormir acompanhado. Sempre dormia. Raramente acompanhado.

Uma vez o Mané tinha me dado um trabalho. Na copa. Era só pegar a anotação do garçom e entregar a bebida. Isto e lavar copos. Fique lá um tempo, mas acabava bebendo mais do que servindo. O Mané percebeu e me mandou trabalhar na limpeza. Não suportava beber os restos da cerveja das garrafas que recolhia. Estava sempre quente. Como a que tomava agora. Pedi a conta.

Quente, num dia quente e de azar. Suava muito. Sabia que o desodorante que estava no fim não seria substituído. Ia ficar desacompanhado mais uma sexta.

15.6.05

Contos do Cotidiano - Camisa Amarela

Sempre tive essa impressão da imensa porcaria que é o ser humano. O Zéca vivia cercando as mulheres casadas. Não estava cercado delas. Mas adorava correr um rabo-de-saia. Mas tinha que ser casada. Era uma tara dele. Se não fosse casada, ele dizia que corria o risco da mulher gamar e querer casar com ele. E ele não era homem de uma mulher. Por isso tantava com as casadas. Mulher casada não delata. Não abre o bico. Dia desses bateu lá em casa. Ele só ia lá quando precisava de alguma coisa. Menos mau. Me deixava queito a maioria do tempo. Bateu na porta. Abri:
- Ah?!? É só você.
- Deixa eu usar teu telefone.
- Porra! Pra quê comprou aquele celular?
- Cara, o meu só recebe ligação. E aquela loiraça que te falei pediu pra ligar. É ali no serviço dela. Ligação local.
- Vê se não demora. Tô duro. Daquela outra vez você falou que era rápido e ficou meia hora pendurado aí.

Valia a pena deixar. A loira era bonida, muito gostosa. E era uma cadela. Boa parte do pessoal do bairro já tinha saído com ela. Costuma bater ponto no boteco do mané. Sexta-feira. Sempre na sexta-feira, quando o marido viajava. O pior é que o cara nem suspeitava que era corno. Viajava na sexta de noite, trabalhava até na quarta num posto de gasolina. Na estrada, no meio do nada. E nos outros dias trabalhava no centro, noutro posto do mesmo dono. O dinheiro que entrava ele mandava pra esposinha. E ela torrava tudo em roupa e bijuteria. Nunca sobrava nada. O cara até já me devia uns trocos. Dizia que ía pagar.
- Minha esposa vai economizar.
Eu já tinha dado a grana por perdida. Quem sabe o Zéca faturava a loira. Me agradeceria por toda a vida. Eu até podia perdoar a dívida do corno, só por ser cúmplice.

- Alô! Aqui é o José Carlos, eu queria falar com a Senira.
...
- Não pode atender? Mas achei que era o horário de almoço dela.
...
- Mudou. Tá bom, ligo amanhã.

- Mudou o horário de almoço dela.
- Mudou nada. Quem atendeu?
- Era o chefe dela.
- Ah!

O chefe era amante oficial da loira. E todo mundo sabia da fama do Zéca. Não tinha sucesso com as mulheres. Mas tentava até a mulher chamar a polícia, ou pedir pra'lguém dar uma sova nele. Um pentelho. Se o chefe passasse o telefone, o cara ia ligar todo dia. Agradeci ao chefe da Senira em silêncio. Me livrou do Zéca ir todo dia pedir o telefone emprestado.

- Valeu bicho. Saiu. Foi até o bar, do outro lado da quadra. Tinha marcado um encontro com uma morena. A Vilma. Aquela também não valia nada. E era feia de dar dó. Magrelona, com uns cabelos que pareciam vassoura suja. Devia lavar só uma vez por mês. Quando pegava chuva. Saíram de mãos-dadas. Tinha até um bolão no bar. Fora essa, existe outra mulher casada que queira dar pro Zéca? Era a aposta. Ninguém acreditava. Mas se fosse verdade, quem jogou no sim receberia em torno de vinte pra um. Mas ninguém botava fé no Zéca.

Já iam chegando no final da quadra. Virando e andando uns metros estariam no cafofo que ele tinha alugado pra levar as senhoras. Dizia sempre senhoras, afinal, eram casadas. E mulher casada é coisa séria, de se tratar com respeito. Não tinha onde cair morto. Dois terços do salário gastava naquele cafofo. No aluguel. E morava de favor com o Pinga. Não tinha dinheiro nem pra ajudar a comprar comida.

Atravessei a rua e fui até o bar. Pedi uma cerveja. Tomei um gole. Ouvimos dois tiros. Achamos o Zéca estirado. O Tonho não gostava que caras de camisa amarela saíssem com a mulher dele.

12.6.05

Contos do Cotidiano - Truco

Eu carteava com o lombriga. O pé-sujo fez parceria com o canhoto. Sentaram na mesa de jogo, o pé-sujo cortou e o lombriga deu as cartas. Tomei um gole de cerveja. Peguei minhas cartas. Péssimo jogo. Parecia que o pé-sujo tinha tique nervoso, de tanto piscar e fazer caretas para o canhoto. O jogo de truco é o único momento na vida de um homem em que lhe é permitido piscar para outro homem. Não será tachado de bicha ou viado. Ao contrário, além de piscar para o parceiro, ele ainda estará com o gato. Interessante, o cidadão pisca para o outro, anunciando que está com o gato, e ninguém o chama de viado. Quero ver quem é realmente macho pra fazer isso em estádio de futebol. O lombriga sinalizou que não tinha nada. Péssimo jogo. Perdemos a primeira e entregamos. Zero a um.

O canhoto pegou o baralho. Ficou uns dois minutos jogando as cartas para lá e para cá. Tomei um gole de cerveja e o copo esvaziou. "Pega outra garrafa no congelador." Foi o que eu disse pro filho do lombriga, um moleque esquelético, de cabelo preto com umas mechas vermelhas pintadas. O moleque foi e voltou, mas esqueceu de abrir a garrafa. O canhoto continuava embaralhando. "Porra moleque, tem um abridor pendurado na porta da geladeria. Abre lá." O canhoto finalmente terminou e estendeu o monte de cartas para o lombriga, que cortou e me passou um quatro. Péssimo jogo. O canhoto terminou de dar as cartas. O pé-sujo tinha tique nervoso. Joguei o quatro. O pé-sujo jogou o mole e o lombriga jogou outro quatro. O canhoto descartou uma dama. Estavam bem. Na segunda o pé-sujo jogou um ás. O lombriga escondeu e o canhoto também. Joguei um dois. E depois um cinco. Péssimo jogo. O pé-sujo trucou e o lombriga correu. Zero a dois. Tomei um gole de cerveja.

Era minha vez de dar cartas. Dei umas três embaralhadas e passei para o canhoto cortar. Distribui o baralho e virei uma dama em cima da mesa. Beleza. Tinha dois cavalos. O tique nervoso do pé-sujo continuava. De primeira ele jogou um três. O lombriga não tinha nada. Aliás, tava ali um sujeito que nunca tinha nada. Fudido na vida, trabalhava numa loja de material agropecuário em plena cidade grande. A única coisa que realmente vendia naquela loja era ração de cachorro e de gato. Mas tinham que vender da barata, porque só gente estropiada freqüentava o local. Os ricaços comprovam ração em pet-shop. Ou então davam filé pra'queles animais nojentos que levam em shopping, restaurante, cabeleireiro e lojas. Lugares que barram criança maltrapilha na porta. É até engraçado, o bicho pode entrar, mas a criançada fica na vitrine lambendo com os olhos. Tomei um gole de cerveja. O canhoto jogou um cinco. Joguei um cavalo. O de copas. Tinha ainda o outro, de paus. Joguei um sete e segurei o cavalo. O pé-sujo jogou outro três. O lombriga e o canhoto esconderam. O pé-sujo trucou e o lombriga escondeu. Eu não tinha dado sinal. Mandei o pé-sujo jogar. Ele jogou uma dama. Suspeitei que o safado tinha levado a outra rodada na lábia. O canhoto jogou outra. Levantei pra seis. Correram. Três a dois.

O baralho foi pro pé-sujo. Tomei um gole de cerveja. Cortei. O pé-sujo deu as cartas. Péssimo jogo. Não tinha nada, mas parecia que o lombriga tinha alguma coisa. Estava ali se remexendo todo. O pé-sujo não se mexia. A cerveja deve ter curado o tique nervoso. O lombriga jogou. Ganhou sozinho a primeira. Então o pé-sujo trucou de novo. Tava ali um cara mentiroso. Não podia ser verdade, suspeitei. Afinal, o cara engana a mulher e a amante, saindo vez que outra com o bengala. Nem os amigos suspeitava que ele era bicha até o dia em que ele recebeu flores no serviço. Sem o pé-sujo saber, o canhoto pagou cinquenta pro entregador contar quem tinha mandado. Ninguém que sabia contou pro pé-sujo. Tomei um gole de cerveja. O lombriga parecia animado. Levantou pra seis. Então o pé-sujo subiu na cadeira, levantou pra nove. O lombriga nem me olhou. Mandou jogor. Era o gato. Péssimo jogo. Três a onze.

Agora o baralho era de novo do lombriga. Embaralhou bem. Tomei um gole de cerveja. O pé-sujo cortou e o lombriga distribuiu. Não tinha nada. O canhoto e o pé-sujo trocaram as cartas e o canhoto deu uma risadinha cínica. Tomei um gole de cerveja, tinha acabado de novo. "Guri, pega lá outra cerveja, e não esquece de abrir." O moleque do lombriga, tava todo encolhido ao lado do pai, mas foi lá. Trouxe a garrafa aberta. Guri esperto. Falaram que iam jogar. Dei uma olhada nas cartas do lombriga. Nada. Como eu, ele não tinha nada. Tomei um gole de cerveja. Botamos as cartas no baralho e saímos da mesa. Fui ver se ainda descolava alguma coisa pra comer. Péssimo jogo.

10.6.05

Pardieiro em Beira de Estrada

Três da madrugada. Sentado num banco duro. Gelado. Estava no meio do caminho. Saído do interior, voltando para a capital. É impressionante como no meio de todos os caminhos sempre existem lugares fétidos e nojentos. E é impressionante como, a cada ida e vinda, se cai ali. Gosto destes lugares.

O cidadão ao meu lado estava em pé. Não muito longe, nem tão perto. Dava pra sentir o cheiro do cigarro vagabundo que fumava. O cachorro, devia ter uns seis meses, o encarou. Fitou-o de baixo para cima umas duas vezes. Claro que o cheiro do cigarro incomodava mais a ele (o cachorro) do que a mim. Depois de encarar o cidadão, deve ter pensado o mesmo que eu: parece cocô escorrido, depois que jogam na parede.

O escorrido estava no mesmo ônibus vagabundo que eu. Provavelmente tinhamos o mesmo destino. A capital. Eu não o conhecia, fora saber que íamos para o mesmo lugar, que o cigarro que fumava era vagabundo e fedorento e que tinha cara de cocô escorrido, nada mais posso dizer sobre ele. Nem quero. As pessoas adoram poder dizer alguma coisa umas sobre as outras. Mesmo quando não se tem nada de útil ou mesmo de inútil para comentar, as pessoas ainda falam umas das outras. Já vi muitos casamentos acabarem por isso.

O cachorro veio para meu lado. Enfiou-se entre minhas pernas e lambeu meu sapato. Tinha pisado num sorvete. Provalmente jogado por um melequento qualquer, que não conseguiu terminá-lo antes da mãe, aos berros, puxá-lo para dentro do ônibus. O cachorro continuou. Ergui o pé para que pudesse lamber a sola. Ficou ali até sumir o gosto do sorvete. O sapato estava limpo novamente e o motorista não poderia dizer que eu sujaria o piso do ônibus.

Fui até o mostruário de bebidas dar uma olhada. Vinhos vagabundos e cachaça embotada em garrafas transparentes de cerveja. Antes devem ter sido enchidas com gasosa de franboesa. Muitas Vezes. Agora serviam de embalagem para o que alguns consideram a desgraça da humanidade, e outros consideram uma dádiva. Nenhuma valia ser comprada.

Estava frio. O alto-falante anunciou que o ônibus estava de saída. Fui até a porta esperar o motorista, torcendo para que não estivesse com sono depois de comer dois pratos de picadinho gorduroso, de carne de terceira. O cachorro veio se despedir. Deu uma cheirada e abanou o rabo. Acho que gostou de mim. Entrei depois do escorrido. Ainda fedia cigarro vagabundo.